Partimos da constatação de que vigora uma vasta crise das imagens de Deus nas religiões, nas igrejas e nas sociedades contemporâneas. Alguns apressados proclamaram logo a morte de Deus. Outros tentam superar a crise elaborando imagens mais modernas e adequadas à nossa percepção atual da realidade. Não representa tal procedimento mero trabalho substitutivo, mantendo a estrutura da crise, pois não rompe com o mundo das imagens? Mas há os que procuram pensar a partir de uma instância mais originária do que as imagens: a existência humana, histórica, aberta e dinâmica, onde, de fato, transparece o Mistério, a dimensão de imanência e a de transcendência, isto é, aquilo que chamamos Deus. No início de tudo está o encontro com Deus, não ao lado, dentro ou acima do mundo, mas juntamente com o mundo, no mundo e através do mundo. Deus somente é real e significativo para o ser humano se emergir das profundezas de sua própria experiência no mundo com os outros. Por ser real e significativo, apesar de ser Mistério, ganha um nome; projetamos imagens dele; construímos representações. E a forma como concretizamos nossa experiência. Mas é nesse processo que se arma um grave problema: Que valor dar às imagens? Como se relacionam com Deus? Podemos dispensar as imagens? Os homens religiosos que acumularam experiências com a intimidade de Deus poderão nos ajudar. Ao testemunharem Deus, usando o recurso da linguagem e do imaginário, eles afirmam, negam c voltam a afirmar. Traçaram-nos um caminho de três passos, que queremos também percorrer.
A) A MONTANHA É MONTANHA:
SABER-IMANÊNCIA-IDENTlFICAÇÃO
Num primeiro momento da experiência de Deus, sob o impacto do encontro, damos nomes a Deus: chamamo-lo de Senhor, de Pai, de Mãe, de Pedra, de Santo. A palavra está a serviço do que experimentamos de Deus. Fixamos uma representação. Inicialmente não temos ainda consciência de que se trata apenas de uma representação daquilo que não pode ser representado. Deus é Pai bondoso ou Mãe de infinita ternura; em nível de experiência, temos a ver com uma realidade compacta e não meramente figurativa. Sabemos sobre Deus por uma ciência experimental, possível de ser traduzida por um discurso já sofisticado da argumentação filosófico-teológica. Aqui se elaboram conceitos e uma lógica minuciosa dos meandros do mistério divino e de sua comunicação ao universo e aos seres humanos. Deus é identificado com os conceitos que dele fazemos. Ele habita nossos conceitos e nossas linguagens. Elaboramos doutrinas sobre Deus e sobre o mundo divino, doutrinas que se encontram nos vários credos e nos catecismos. Com tal procedimento tentamos encher de sentido último e pleno nossa vida. Deus pode ser encontrado na intimidade do coração. Com ele podemos falar, rezar, cair de joelhos, levar nossos queixumes e esperar sua graça e salvação. A montanha é montanha, Deus-Pai-e-Mãe de infinita ternura.
b) A montanha não é montanha:
NÃO-SABER-TRANSCENDÊNCIA-DESIDENTIFICAÇÃO
Num segundo momento da experiência de Deus, damo-nos conta da insuficiência de todas as imagens de Deus. Tudo o que dele dizemos é figurativo e simbólico. Ele está para além de todo nome e desborda de todo o conceito. Deus é simplesmente transcendente. Vale dizer, ele rompe todos os limites e está para além de todos os confins. Sempre e sempre. Talvez tenhamos passado por uma profunda crise. Os marcos referenciais de nosso agir religioso começaram a vacilar. Como compreender Deus-Pai ao lado da violência cósmica das galáxias que se engolem, das devastações que dizimam grande parte do capital biótico da Terra ou simplesmente face ao drama de nossos amigos inocentes que foram presos e torturados barbaramente por causa de suas convicções libertárias? Como conciliar a bondade de Deus-Mãe com a esposa amada que foi seviciada, diante do marido preso, até ser morta? Deus é Pai materno ou Mãe paterna, mas um outro Pai e uma outra Mãe. Não é um maior, mas um diferente.
Começamos a questionar todas as nossas representações. Pode surgir uma teologia da morte de Deus: decreta a morte de todas as palavras referidas ao Divino, porque elas mais escondem do que comunicam Deus. Não sabemos mais nada; desidentificamos Deus das coisas que dizemos dele. Por aí entendemos o lema dos mestres zen: Se encontrares o buda mata-o." Se encontrares o buda, não é o Buda - é apenas sua imagem. Mata a imagem para estares livre para o encontro com o verdadeiro Buda. Algo semelhante notamos nos grandes mestres espirituais do cristianismo, especialmente em São João da Cruz, que se mostrava hostil às visões, aos êxtases e a todas as formas de experiências especiais.2 Deus não é encontradiço entre e ao lado das coisas deste mundo. Se o encontrarmos aí, então encontramos um ídolo e não o Deus vivo e verdadeiro que está sempre para além dos sentidos corporais e espirituais. A montanha não é montanha: Deus-Pai não é Deus-Pai como nossos pais terrestres o são.
C) A MONTANHA É MONTANHA:
SABOR-TRANSPARÊNCIA - IDENTIDADE
Num terceiro momento da experiência de Deus, reabilitamos as imagens de Deus. Após tê-las afirmado (A), tê-las negado (B), agora criticamente nos reconciliamos com elas. Assumimo-las como imagens e não mais como a própria identificação de Deus. Compreendemos que nosso acesso a Deus só pode ser feito através das imagens. Começamos a saboreá-las porque estamos livres diante delas. Elas são os andaimes, não a construção, e as acolhemos como andaimes. Não pretendemos nenhuma ciência sobre Deus; saboreamos a sabedoria de Deus que se revela através de todas as coisas. Tudo pode se tornar transparente a ele, porque tudo é figurativo. Figurativo de quê? De Deus, de sua sabedoria, de seu amor, de sua bondade e de sua misericórdia, etc. Mas isso só é possível se tivermos passado pelo primeiro e segundo momentos, quando nos tivermos libertado da simples "sabedoria da linguagem"(I Cor 1,17) e quando tivermos já passado pela "doutrina da cruz" que destrói a ciência dos cientistas (I Cor 1,18-23). Então não nos preocupamos mais com os antropomorfismos, porque sabemos que tudo o que dissermos de Deus é antropomorfo. Mas Deus pode ser antropomorfo (à imagem do homem) porque o homem é teomorfo (à imagem de Deus). Tudo é simples. Nada há para se refletir. Basta ver, mas ver em profundidade. Deus, sem se confundir com as coisas, está presente nelas, porque as coisas são - para quem vê em profundidade - trans-parentes. É a verdade do panenteísmo. Por essa palavra queremos dizer: tudo está em Deus, embora nem tudo seja Deus; bem como Deus está em tudo, embora Deus não seja tudo. Junto com o Criador está a criatura, vinda dele, mas diferente dele.
Quem chegou a este terceiro momento não deixa nada fora; assume tudo, porque tudo é revelação de Deus. "Quem é o Tao?", perguntou certa vez um discípulo ao mestre zen. E este respondeu: "É a mente diária de cada um." "Que é a mente diária de cada um?", tornou o discípulo. Ao que o mestre concluiu: "Quando fatigados, dormimos; quando temos fome, comemos."' Para quem percebe que Deus está em todas as coisas, tudo é manifestação do dom que é Deus, da gratuidade que é seu amor. Essa simplicidade reconduz todas as coisas, boas e más, para a sua unidade em Deus. A partir disso Paulo podia admoestar os romanos que oferecessem a vida como hóstia viva, santa e agradável a Deus, pois nisso consiste o verdadeiro sacrifício (cf. Rm 12,1); quem dá, dê com simplicidade; quem preside, presida com solicitude; quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria (cf. Rm 12,8); quer comamos, quer bebamos, quer façamos qualquer coisa, que seja feito tudo para a glória de Deus (cf. I Cor 10,31). Quem experimentou o mistério de Deus não pergunta mais: vive simplesmente
A transparência de todas as coisas e celebra o advento de Deus em cada situação.
A experiência de Deus não se dá apenas neste terceiro momento do sabor. Ela é uma experiência total que inclui o saber, o não-saber e o sabor. Importa não fixar-se em nenhum deles. O terceiro momento torna-se novamente primeiro e inicia o processo onde os nomes de Deus são afirmados, negados e reassumidos. Todo esse percurso constitui a experiência concreta, dolorosa e gratificante de Deus. Ele se dá e se retrai continuamente; se re-vela e se vela em cada momento porque ele será sempre o Mistério e o nosso eterno Futuro.
(Texto de BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: A transparência de todas as coisas.)