terça-feira, 1 de março de 2011

Experimentar Deus

Partimos da constatação de que vigora uma vasta cri­se das imagens de Deus nas religiões, nas igrejas e nas sociedades contemporâneas. Alguns apressados pro­clamaram logo a morte de Deus. Outros tentam superar a crise elaborando imagens mais modernas e adequadas à nossa percepção atual da realidade. Não representa tal procedimento mero trabalho substitutivo, mantendo a es­trutura da crise, pois não rompe com o mundo das ima­gens? Mas há os que procuram pensar a partir de uma instância mais originária do que as imagens: a existência humana, histórica, aberta e dinâmica, onde, de fato, transparece o Mistério, a dimensão de imanência e a de transcendência, isto é, aquilo que chamamos Deus. No início de tudo está o encontro com Deus, não ao lado, dentro ou acima do mundo, mas juntamente com o mun­do, no mundo e através do mundo. Deus somente é real e significativo para o ser humano se emergir das pro­fundezas de sua própria experiência no mundo com os outros. Por ser real e significativo, apesar de ser Mistério, ganha um nome; projetamos imagens dele; construímos representações. E a forma como concretizamos nossa ex­periência. Mas é nesse processo que se arma um grave problema: Que valor dar às imagens? Como se relacio­nam com Deus? Podemos dispensar as imagens? Os ho­mens religiosos que acumularam experiências com a in­timidade de Deus poderão nos ajudar. Ao testemunha­rem Deus, usando o recurso da linguagem e do imaginá­rio, eles afirmam, negam c voltam a afirmar. Traçaram-nos um caminho de três passos, que queremos também percorrer.
A)  A MONTANHA É MONTANHA:
SABER-IMANÊNCIA-IDENTlFICAÇÃO
Num primeiro momento da experiência de Deus, sob o impacto do encontro, damos nomes a Deus: chamamo-lo de Senhor, de Pai, de Mãe, de Pedra, de Santo. A palavra está a serviço do que experimentamos de Deus. Fixamos uma representação. Inicialmente não temos ainda consciên­cia de que se trata apenas de uma representação daquilo que não pode ser representado. Deus é Pai bondoso ou Mãe de infinita ternura; em nível de experiência, temos a ver com uma realidade compacta e não meramente figurativa. Sabemos sobre Deus por uma ciência experimental, possí­vel de ser traduzida por um discurso já sofisticado da argu­mentação filosófico-teológica. Aqui se elaboram conceitos e uma lógica minuciosa dos meandros do mistério divino e de sua comunicação ao universo e aos seres humanos. Deus é identificado com os conceitos que dele fazemos. Ele habita nossos conceitos e nossas linguagens. Elaboramos doutrinas sobre Deus e sobre o mundo divino, doutrinas que se en­contram nos vários credos e nos catecismos. Com tal proce­dimento tentamos encher de sentido último e pleno nossa vida. Deus pode ser encontrado na intimidade do coração. Com ele podemos falar, rezar, cair de joelhos, levar nossos queixumes e esperar sua graça e salvação. A montanha é mon­tanha, Deus-Pai-e-Mãe de infinita ternura.
b) A montanha não é montanha:
NÃO-SABER-TRANSCENDÊNCIA-DESIDENTIFICAÇÃO
         Num segundo momento da experiência de Deus, damo-nos conta da insuficiência de todas as imagens de Deus. Tudo o que dele dizemos é figurativo e simbólico. Ele está para além de todo nome e desborda de todo o conceito. Deus é simplesmente transcendente. Vale dizer, ele rompe todos os limites e está para além de todos os confins. Sempre e sem­pre. Talvez tenhamos passado por uma profunda crise. Os marcos referenciais de nosso agir religioso começaram a vaci­lar. Como compreender Deus-Pai ao lado da violência cósmi­ca das galáxias que se engolem, das devastações que dizimam grande parte do capital biótico da Terra ou simplesmente face ao drama de nossos amigos inocentes que foram presos e torturados barbaramente por causa de suas convicções libertárias? Como conciliar a bondade de Deus-Mãe com a esposa amada que foi seviciada, diante do marido preso, até ser morta? Deus é Pai materno ou Mãe paterna, mas um ou­tro Pai e uma outra Mãe. Não é um maior, mas um diferente.
         Começamos a questionar todas as nossas representações. Pode surgir uma teologia da morte de Deus: decreta a morte de todas as palavras referidas ao Divino, porque elas mais escon­dem do que comunicam Deus. Não sabemos mais nada; desidentificamos Deus das coisas que dizemos dele. Por aí entendemos o lema dos mestres zen: Se encontrares o buda mata-o." Se encontrares o buda, não é o Buda - é apenas sua imagem. Mata a imagem para estares livre para o encontro com o verdadeiro Buda. Algo semelhante notamos nos grandes mestres espirituais do cristianismo, especialmente em São João da Cruz, que se mostrava hostil às visões, aos êxtases e a todas as formas de experiências especiais.2 Deus não é encontradiço entre e ao lado das coisas deste mundo. Se o encontrarmos aí, então encontramos um ídolo e não o Deus vivo e verdadeiro que está sempre para além dos senti­dos corporais e espirituais. A montanha não é montanha: Deus-Pai não é Deus-Pai como nossos pais terrestres o são.
C)  A MONTANHA É MONTANHA:
SABOR-TRANSPARÊNCIA - IDENTIDADE
         Num terceiro momento da experiência de Deus, rea­bilitamos as imagens de Deus. Após tê-las afirmado (A), tê-las negado (B), agora criticamente nos reconciliamos com elas. Assumimo-las como imagens e não mais como a pró­pria identificação de Deus. Compreendemos que nosso acesso a Deus só pode ser feito através das imagens. Come­çamos a saboreá-las porque estamos livres diante delas. Elas são os andaimes, não a construção, e as acolhemos como andaimes. Não pretendemos nenhuma ciência sobre Deus; saboreamos a sabedoria de Deus que se revela através de todas as coisas. Tudo pode se tornar transparente a ele, porque tudo é figurativo. Figurativo de quê? De Deus, de sua sabedoria, de seu amor, de sua bondade e de sua mise­ricórdia, etc. Mas isso só é possível se tivermos passado pelo primeiro e segundo momentos, quando nos tivermos li­bertado da simples "sabedoria da linguagem"(I Cor 1,17) e quando tivermos já passado pela "doutrina da cruz" que destrói a ciência dos cientistas (I Cor 1,18-23). Então não nos preocupamos mais com os antropomorfismos, porque sa­bemos que tudo o que dissermos de Deus é antropomorfo. Mas Deus pode ser antropomorfo (à imagem do homem) porque o homem é teomorfo (à imagem de Deus). Tudo é simples. Nada há para se refletir. Basta ver, mas ver em profundidade. Deus, sem se confundir com as coisas, está presente nelas, porque as coisas são - para quem vê em profundidade - trans-parentes. É a verdade do panenteísmo. Por essa palavra queremos dizer: tudo está em Deus, embora nem tudo seja Deus; bem como Deus está em tudo, embora Deus não seja tudo. Junto com o Criador está a criatura, vinda dele, mas diferente dele.
         Quem chegou a este terceiro momento não deixa na­da fora; assume tudo, porque tudo é revelação de Deus. "Quem é o Tao?", perguntou certa vez um discípulo ao mestre zen. E este respondeu: "É a mente diária de cada um." "Que é a mente diária de cada um?", tornou o discí­pulo. Ao que o mestre concluiu: "Quando fatigados, dor­mimos; quando temos fome, comemos."' Para quem per­cebe que Deus está em todas as coisas, tudo é manifestação do dom que é Deus, da gratuidade que é seu amor. Essa simplicidade reconduz todas as coisas, boas e más, para a sua unidade em Deus. A partir disso Paulo podia admoes­tar os romanos que oferecessem a vida como hóstia viva, santa e agradável a Deus, pois nisso consiste o verdadeiro sacrifício (cf. Rm 12,1); quem dá, dê com simplicidade; quem preside, presida com solicitude; quem pratica a misericór­dia, faça-o com alegria (cf. Rm 12,8); quer comamos, quer bebamos, quer façamos qualquer coisa, que seja feito tudo para a glória de Deus (cf. I Cor 10,31). Quem experimentou o mistério de Deus não pergunta mais: vive simplesmente
         A transparência de todas as coisas e celebra o advento de Deus em cada situação.
         A experiência de Deus não se dá apenas neste tercei­ro momento do sabor. Ela é uma experiência total que inclui o saber, o não-saber e o sabor. Importa não fixar-se em nenhum deles. O terceiro momento torna-se novamen­te primeiro e inicia o processo onde os nomes de Deus são afirmados, negados e reassumidos. Todo esse percurso constitui a experiência concreta, dolorosa e gratificante de Deus. Ele se dá e se retrai continuamente; se re-vela e se vela em cada momento porque ele será sempre o Mistério e o nosso eterno Futuro.

(Texto de BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: A transparência de todas as coisas.)