quarta-feira, 22 de junho de 2011

Religião e sociedade tradicional

Por sociedade tradicional refiro-me a sociedade existente antes do século XVI. O objetivo é apontar algumas marcas fundamentais desta sociedade:como ela encara a realidade, como ela lida com a questão do tempo, como ela organiza seu espaço, como ela explica a anomia. Resumindo: Por qual meio ela conhece, se organiza e explicao mundo.

Todas as sociedades desenvolveram meios (teorias) de conhecer o mundo[1] e justifica-lo, tanto em suas bonanças como em suas tragédias. Os meios não têm como único objetivo conhecer e justificar, mas também manter determinada realidade.

Um meio comum entre as sociedades tradicionais para tal empreitada era a religião.[2] Tanto Israel, como a Grécia e até mesmo o Império Romano justificou sua realidade em termos religiosos.[3]Cidades surgiam e se desenvolviam a partir de lugares sagrados e em torno deles. A conclusão que se chega a partir deste ponto, é que, a religião tinha um status que deixava a margem qualquer “possibilidade” de contestação.

Esta sociedade vê toda sua realidade não como coisa construída por ela mesma, mas como algo que existe desde o começo, algo que foi dado por um deus. Seu universo simbólico-religioso está inteiramente estruturado por um conjunto de mitos, que explicam a um tempo a origem do mundo e do grupo.[4] A memoria coletiva é dada. Ela está inteiramente contida nas estruturas, na organização, na linguagem, nas práticas cotidianas de sociedade regidas pela tradição. [5] O céu, então, se torna o modelo para terra. [6]



Interpreta-se a ordem institucional de modo a ocultar o mais possível o seu caráter de coisa construída. Que aquilo que foi formado ex nihilo surja como a manifestação de alguma coisa que existiu desde o começo dos tempos. (...) que as pessoas esqueçam que essa ordem foi estabelecida por homem e continua dependendo dele [7]



Uma vez que se entende e defende a realidade como algo vindo do céu para terra, algo dado por um deus. A tentativa de promover mudanças é vista como blasfêmia, acarretando em transtorno para toda realidade. Para Jung é desta concepção que nasce uma das características fundamentais das sociedades tradicionais, a carência de progresso técnico. Estas sociedades são marcadas pela sacralidade da tradição que produz uma profunda aversão a introduzir modificações no regime de vida habitual, por temor de provocar transtornos de caráter magico. [8] Jung vai mais além, a firma que tal carência dá base para a mistificação, sacralização e veneração dos meios de produção. [9]

O retrato desta sociedade que segue a tradição seria de um mundo estável, em que a vida era organizada em torno do toque do sino da igreja, que regulava os espaços e o tempo. Abumanssur nos dá um exemplo disso ao falar da cidade de São Paulo, que segundo ele, até o século XVII, as manifestações públicas religiosas eram também oficiais e obrigatórias para todos os súditos de um governo que andava de braços dados com a igreja (...) tais eventos oficiais de cunho religioso pontuavam o tempo, o calendário anual, e o espaço, as áreas comuns, especialmente as urbanas.[10]

 A tradição seria a casa onde habitamos, os limites onde nos movemos; a religião o meio legitimador[11] e mantedor desta casa.

 Weber foi um dos precursores em mostrar o poder da tradição. A partir de uma discussão econômica ele mostra a influência da tradição sobre algumas mulheres alemãs, estas devido ao habito, são incapazes de abandonar os modos tradicionais de produção.[12] Ele declara ainda que:



O adversário com o qual teve de lutar o “espírito” do capitalismo [no sentido de um determinado estilo de vida regido por normas e folhado a “ética”] foi em primeiro lugar [e continua sendo] aquela espécie de sensibilidade e de comportamento que se pode chamar de tradicionalismo.[13]



A tradição é a casa, a religião é o discurso que a mantém[14]



O símbolo da casa é apropriado para entendermos a importância da tradição. A casa é um lugar onde nos sentimos seguros, onde cada coisa tem seu lugar especifico, e por isso, facilita nossa vida – sabemos onde procurar e obter respostas. Ela é o mundo que conhecemos com tamanha intimidade que dificilmente ao caminhar por ela sofreríamos algum acidente. A mudança de um objeto de local ou sua retirada, na concepção tradicionalista acarretaria em anomia. Anomia aqui não é ausência de catástrofe, mas de compreensão, de sentido. Berger diz que o poder legitimador da religião tem ainda outra dimensão importante – a integração em um nomos compreensivo. Isto significa dizer que a religião se apresenta com um discurso atenuante, promovendo a ideia de que o mundo faz sentido, e que, portanto, eu posso até mesmo ter uma boa morte. A boa morte não é precisamente morrer em um leito, mas morrer em volta de símbolos religiosos, morrer na busca de objetos ou na defesa de ideias sacralizadas, era a motivação das antigas cruzadas e do terrorismo moderno.[15] Os homens partem para a guerra e são mortos entre orações, benção e encantamentos.[16]

Mas, toda tradição ou sociedade ao continuar no tempo, enfrenta o problema de transmitir seus sentidos (memorias) para próxima geração.[17] É neste ponto que a religião contribui como instrumento eficaz de legitimação.Talvez com isso em mente fosse possível Durkheim declarar que ela “é cimento social”. É o elemento que da sustentabilidade e durabilidade a uma ideia. Como o cimento tem a capacidade de unir vários elementos, nas sociedades tradicionais à religiãoreúne em torno de si todas as esferas[18] da vida. Weber diz que numa sociedade tradicionalista a esfera econômica está pautada pelo contentamento, pela ideia de o quanto preciso para sobreviver, ideia esta que não deixa de buscar referencial religioso, afinal, tendo o que comer e vestir, deve-se estar contente, porque é o que sugere a bíblia. Ele observa que a tática dos empresários em aumentar os salários para obter maior produtividade, não obteve sucesso, isto porque, o operariado não se perguntava pelo quanto poderia ganhar, mas pelo quanto tinha que trabalhar para suprir suas necessidades tradicionais. Este ser humano não quer, e sua “natureza" contribui para isso, ganhar dinheiro, mas simplesmente viver do modo como está habituado, com o necessário para tanto.[19]

De onde vem à eficácia da Religião? Ela vem, dentre outras, de sua capacidade de relacionar a realidade terrestre com toda sua precariedade à realidade supramundana. Nos dizeres de Berger: “As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado realissimum, que por definição está além das contingências dos sentidos humanos e da atividade humana”. [20]

Não só “se fundam com o sagrado”, mas também a própria experiência religiosa transforma os espaços,[21] fazendo tudo o mais girar em torno dele. É o caso da Cidade de São Paulo, seu desenvolvimento se deu em torno de lugares sagrados, suas ruas tinham a função de ligar os lugares sagrados, pois estes eram referências, e muito mais, a importância da rua estava condicionada ao fato de ela levar aos lugares pios, a ter ou não, procissão por ela.[22]

Resumindo

As sociedades tradicionais são sociedades de memoria, são estáveis (progresso lento e não consciente), tudo gira em torno da religião (espaço, tempo etc.), até as catástrofes tem explicação e sentido, a realidade é dada (lugar de cada pessoa na sociedade), a origem do grupo e do mundo está nos deuses, avessa a modificações (medo de castigo), sacralização dos meios de produção e a racionalidade econômica se reduz a sobrevivência.



[1] São as chamadas “cosmovisões”
[2]“Todas as grandes instituições sócias, tanto a ciência, quanto as regras da moral e do direito tiveram sua origem em prescrições rituais. Surgiram então da religião” – A bumanssur. Provavelmente citando Durkheim
[3] Berger, Peter Ludwig. Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Paulus. São Paulo, 1985. Pag.: 48
[4] No gênesis (bíblia) o capitulo primeiro fala da origem do mundo e no capitulo doze fala da origem do povo de Israel.
[5] HERVIEU-LÉGER, Danièle. O Peregrino e o convertido: a Religião em movimento. Editora Vozes: RJ, 2008. Pag.: 61
[6]Sung, Jung Mo. Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias. Fonte editorial. São Paulo, 2008. Pag.: 138
[7] Berger, Peter Ludwig. Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Paulus. São Paulo, 1985. Pag.: 46
[8]Sung, Jung Mo. Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias. Fonte editorial. São Paul o, 2008. Pag.: 137
[9] Idem
[10] ABUMANSSUR, EdinSued. As Moradas de Deus: arquiteturas de igrejas protestantes e pentecostais. Editora Novo Século – São Paulo,2004. Pag.: 37
[11] Este termo é explorado por Weber
[12] WEBER, Max. A ética protestante e o “espirito” do capitalismo. São Paulo: companhia das Letras, 2004. Pag.: 55
[13] WEBER, Max. A ética protestante e o “espirito” do capitalismo. São Paulo: companhia das Letras, 2004. Pag.: 51
[14]“Heteronomia religiosa é o que melhor caracterizava a sociedade medieval, porque nela não havia autonomia nem para pensar. Tudo era controlado pela igreja, até o tempo e a intimidade”. COSTA, Juarez. A contribuição de Andrés Torres Queiruga para uma releitura moderna do cristianismo. Tese de doutorado em ciências da religião. PUC-SP,2009. Pag.: 76
[15] Do terrorismo com raras exceções
[16] BERGER. Pag.: 58
[17]Os rituais de iniciação têm por objetivo, entre outros, de garantira sobrevivência de um modelo de vida. Exemplo disso é o batismo cristão.
[18] Weber trabalha a questão das esferas: econômica, politica, estética, erótica e intelectual, em sua relação com a Religião.
[19] WEBER, Max. A ética protestante e o “espirito” do capitalismo. São Paulo: companhia das Letras, 2004. Pag.: 53
[20] Berger, Peter Ludwig. Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Paulus. São Paulo, 1985. Pag.: 45
[21] Jacó ao fugir por conta de seu irmão Esaú passa a noite em um local onde tem um sonho, nele vê uma escada e anjos subindo e descendo. Ao acordar exclama que aquele lugar é a própria casa de Deus, ao se levantar pegou a pedra que usa como travesseiro e derramou óleo sobre ela, por fim chamou aquele lugar de Betel. Genesis 28. Bíblia TEB.
[22] ABUMANSSUR, EdinSued. As Moradas de Deus: arquiteturas de igrejas protestantes e pentecostais. Editora Novo Século – São Paulo,2004. Pag.: 38

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